A gripe espanhola de 1918 em Pombal

 

Foto: Arquivo pessoal

A Gripe Espanhola, que assolou os cinco continentes no ano de 1918, foi uma das mais devastadoras doenças infectocontagiosas já registradas pela história moderna. As estatísticas são contraditórias, mas estima-se que tenham havido entre 40 milhões e 100 milhões de vítimas tragadas pela pandemia, numa época em que a população mundial girava em torno de 2 bilhões de pessoas. O flagelo teria sido originado, provavelmente, de uma mutação do vírus Influenza, um termo extraído pelos cientistas do idioma espanhol. Contudo, ao contrário do que deixa transparecer, o seu nome não teve relação com a origem da pandemia na Espanha. Além do nome Gripe Espanhola, como ficou conhecida a doença, a versão mais difundida sobre o assunto associa o fato aos acontecimentos decorrentes dos meses finais da Primeira Guerra Mundial, já que os principais países envolvidos no conflito temiam a divulgação de notícias sobre a doença, preocupados, assim, em ocultarem a realidade com vistas à repercussão negativa nos ânimos das tropas que lutavam no front. Como a Espanha não se envolveu naquele conflito mundial, a sua imprensa, independentemente, tomou a iniciativa do pioneirismo na divulgação das notícias do avanço da pandemia, tendo sido essa a outra razão pela qual o mencionado país europeu acabaria confundido por muitos como se fora o país de origem da doença no mundo.

Segundo as mais variadas fontes, a Gripe Espanhola teria sido diagnosticada oficialmente pela primeira vez no mês de março de 1918 em um acampamento militar do estado do Kansas, nos Estados Unidos da América. No mesmo dia, mais de uma centena de soldados se apresentaram na enfermaria apresentando os mesmos sintomas. Estava, assim, deflagrado o alarme. A doença logo se propagou entre os militares e no mês seguinte já havia se transformado em epidêmica nas populações americanas do leste do País, de onde saíam as tropas americanas com destino aos postos marítimos da França, para se juntarem aos países aliados (França, Grã-Bretanha e Rússia), os quais já se achavam em guerra contra a Alemanha desde 1914. Na primeira quinzena de maio, a doença já havia sido diagnosticada em consideráveis parcelas das populações da França, Inglaterra, Itália, Espanha e norte da África, além da Índia, China e Japão. Seja como tenha sido, conta-se que essa primeira onda não teria sido tão devastadora, mas, logo no mês de agosto seguinte, uma segunda onda irrompeu com muito mais letalidade do que a anterior, alvoroçando todo o mundo.1

*O autor é engenheiro-agrônomo, pesquisador da Embrapa e historiador diletante. Reside em Teresina (PI). E-mail: jalmeida.pereira@yahoo.com.br

No Brasil, a Gripe Espanhola teria dado o ar da sua (des)graça em 14 de setembro do mesmo ano de 1918. Supõe-se que o vírus tenha atravessado o Atlântico e ingressado no País a bordo de um navio de bandeira inglesa, chamado Demerara, o qual teria saído da Inglaterra, feito escala em Lisboa (Portugal) e atracado com passageiros infectados nos portos brasileiros de Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Os números das vítimas fatais brasileiras também são desencontrados, mas se falou em algo entre 35 mil e 300 mil óbitos, registrados em uma população de aproximadamente 30 milhões de habitantes.2 Na capital federal, a Influenza não poupou sequer a vida do recém-eleito presidente da República, Francisco de Paula Rodrigues Alves, falecido em 16 de janeiro de 1919, em decorrência de complicações da moléstia, sem ter conseguido assumir o seu segundo mandato presidencial, diagnosticado que fora com a doença justamente no dia previsto para a sua posse, em 15 de novembro de 1918. Não custa lembrar, Rodrigues Alves já havia sido presidente da República no período de 1902 a 1906 e, naquele ano de 1918, o mineiro Venceslau Brás Pereira Gomes (1868-1966) era quem se encontrava no exercício da Presidência, aliás, desde 1914. O vice-presidente eleito juntamente com Rodrigues Alves, ou seja, Delfim Moreira da Costa Ribeiro (1868-1920), também mineiro, assumiu interinamente a Presidência da República até 28 de julho de 1919, após a realização de novas eleições, quando o paraibano Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa (1865-1942), em 13 de abril de 1919, derrotou nas urnas o baiano Rui Barbosa e, finalmente, tomou posse no cargo e governou a nação brasileira até 15 de novembro de 1922.

Na Paraíba, a primeira notícia da ocorrência da Gripe Espanhola teria saído na edição de 26 de outubro de 1918, do jornal A Imprensa, veículo oficial de informação da Igreja Católica do Estado, fundado em 27 de maio de 1897 pelo primeiro bispo e arcebispo paraibano, D. Adauto Aurélio de Miranda Henriques. Praticamente todos os poucos historiadores que trataram desse tema na Paraíba tiveram como a sua principal fonte o jornal supracitado. Consta que a primeira vítima fatal teria sido um marinheiro que trabalhava no transbordo de navios no porto de Cabedelo. Segundo ainda o jornal A Imprensa, ao todo, 5.479 pessoas teriam sido vitimadas pela doença no Estado, então presidido por Francisco Camilo de Holanda (1916-1920). A população paraibana naquele ano de 1918 era estimada em cerca de 950 mil pessoas. A Cholera morbus de 1856, por exemplo, teria provocado a morte de mais de 25 mil paraibanos, número correspondente a um contingente quase cinco vezes superior ao provocado pela Gripe Espanhola de 62 anos depois. Em Pombal, não se conhece oficialmente o número total de óbitos da Cólera.

Na segunda década do século 20, na Paraíba, as estradas de rodagem e de ferro ainda não haviam estabelecido os seus traçados rumo ao oeste para favorecerem a vida das populações residentes no esturricado Sertão. Os transportes de cargas e de pessoas eram feitos em lombos de cavalos e burros, seguindo os percursos trilhados nas suas longas e penosas viagens pelos bravos tropeiros e boiadeiros sertanejos que se dirigiam, nos dois sentidos, para Campina Grande e Itabaiana, com vistas a comercializarem os seus produtos nas feiras das proximidades do litoral. O certo é que, mesmo em um cenário tão inóspito como aquele, quando a população pombalense era estimada em cerca de 19.000 habitantes e o grande município (ainda não tinha sido desmembrado territorialmente para dar origem aos municípios de Malta, Condado, Lagoa, Paulista, Cajazeirinhas, São Bentinho e São Domingos de Pombal) era administrado pelo coronel João Ferreira de Queiroga, mais precisamente, em 1º de dezembro de 1918, o vírus da Gripe Espanhola surgiu em Pombal. A primeira vítima fatal registrada teria sido uma criança de apenas um ano de idade, chamada Severino Domingos dos Santos, residente no povoado de São Bento, atual cidade de São Bentinho. Era filha do casal Manoel Domingos dos Santos e dona Maria Cazimira da Conceição.3

Ao todo, segundo registros oficiais, teriam ocorrido 31 óbitos provocados pelo vírus da Influenza em Pombal, sendo 29 dos casos verificados somente no mês de dezembro de 1918. Os demais foram o caso de uma criança de oito meses de idade, em 1º de janeiro de 1919, e o outro, o último, de um pombalense de 40 anos de idade, em 16 de fevereiro seguinte. As vítimas pombalenses foram pessoas com idades desde um dia de nascida até os 71 anos de vida entre as quais 18 do sexo feminino e 13 do sexo masculino. Para se ter melhor compreensão do que significou para a população de Pombal a mortandade causada pela pandemia da Gripe Espanhola naquele já distante ano de 1918, em todo o território do velho município sertanejo, no mesmo ano, foram registradas 123 mortes diversas, constituindo as principais causas, depois da própria Gripe Espanhola (29 casos), a tuberculose (12 casos), dentição (12 casos), espasmo (11 casos), febre (10 casos), coração (10 casos) e congestão (9 casos).

Todos os casos das vidas ceifadas pela Gripe Espanhola em Pombal, obviamente, foram motivos de grande pesar para a população, podendo-se chamar a atenção para o fato curioso dos óbitos ocorridos no mesmo dia 18 de dezembro de 1918, no perímetro da cidade, de uma mãe (dona Antônia Maria da Conceição, de 37 anos de idade) e do seu filhinho Manoel,  que   acabara     de     nascer justo naquela data. Tratavam-se, respectivamente, da mulher e filho de Guilhermino José de Santana. Outros casos parecidos e que podem ser destacados aconteceram entre a população residente na zona rural do município, como os verificados no sítio São José, quando duas jovens ainda solteiras, Eugênia Alves de Lima, de 15 anos de idade, e Isabel Maria da Conceição, de 35 anos, provavelmente irmãs, faleceram no mesmo dia 29 de dezembro de 1918.

Acredita-se que raras tenham sido as famílias pombalenses que não foram atingidas com o rude golpe da perda de algum dos seus entes queridos pela Gripe Espanhola de 1918. Na família deste rabiscador, por exemplo, pelo menos, dois lares restaram duramente abalados com o luto provocado pelo vírus deletério. A primeira ocorrência familiar se deu no sítio Capoeiras, torrão natal do meu ramo familiar paterno, com o falecimento de uma criança chamada Maria Clementino de Almeida, de apenas três meses de idade, embora ainda nem civilmente registrada, no dia 17 de dezembro de 1918. Era aquela vítima infantil o penúltimo rebento de uma dezena de filhos do meu tio-avô Joaquim Clementino de Almeida Filho (1882-1968), carinhosamente chamado pelos seus familiares de “Tio Velho”, e sua mulher Maria Leopoldina Rosa.4

O segundo caso da Gripe Espanhola na minha parentela, aparentemente ainda mais emblemático do que o primeiro, registrou-se no sítio Alagadiço, berço do meu lado familiar materno. Ali, nos dias 22 e 29 de dezembro de 1918, respectivamente, tombaram pela força do vírus os irmãos Cícero Ferreira de Almeida (Cícero Peba), nascido em 16 de outubro de 1893, e sua irmã Maria da Conceição Barbosa de Almeida, nascida em 21 de novembro de 1894, portanto, quando ainda eram solteiros e tinham 25 e 24 anos de idade. Os dois jovens do Alagadiço eram os filhos mais velhos de uma prole de dez do modesto casal de agricultores João Ferreira de Almeida Primo (? – 1924), meu tio-bisavô, conhecido como João Peba de Almeida, e dona Jovina Maria da Conceição.

E, assim como irrompeu, feito uma bomba, no mês de março de 1918, nos Estados Unidos da América, irradiando os seus estilhaços para os quatro cantos do mundo, a Gripe Espanhola ou Influenza chegaria em apenas nove meses a Pombal, no longínquo Sertão da Paraíba, provocando os maiores desalentos. Desapareceria da Terra de Maringá, da Paraíba, do Brasil e do mundo poucos meses depois, mas acabaria deixando uma população em polvorosa, perplexa e sem entender tal fenômeno até os tempos atuais.

REFERÊNCIAS

1 - NEUFELD, Paulo Murillo. Memória médica: a gripe Espanhola de 1918. Disponível em: <rbac.org.br/artigos/memoria-medica-gripe-espanhola-de-1918/> Acesso em:15 out. 2022.

2 - BRASIL. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Recenseamento do Brasil realizado em 1 de setembro de 1920. 4ª parte. Rio de Janeiro: Typ. da Estatística, 1929. v. 4, 816p.

3 - POMBAL (PB). Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais de Pombal. Livro de Registro de Óbitos nº 7 (lançados de 24 de agosto de 1915 a 17 de novembro de 1920). Pombal, 1920.

4 - PEREIRA, José Almeida. Memorial de uma família sertaneja: genealogia e história. Teresina: Edição do autor, 2021. 230p.



Fonte: José Almeida Pereira


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